terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A praça é nossa?






Leiam abaixo parte da entrevista publicada em 18/02/09, no jornal do Projeto Manuelzão/UFMG, sobre um tema tão atual que interessa, sobretudo, aos belorizontinos, já que o Prefeito Márcio Lacerda decidiu tomar a Praça da Estação do povo...

Será que na atual comissão da Prefeitura, formada para avaliar os eventos da Praça - decisão tomada após o recuo do Prefeito diante das diversas manifestações contra seu decreto - tem alguém que lê e reflete sobre história e cidadania?

"A praça é nossa "

"Na antiguidade grega, elas eram espaços primordialmente destinados à livre discussão. No Brasil, são uma herança da colonização portuguesa, já nascendo com um forte caráter religioso. Espaços de convívio coletivo, as praças sofreram várias mudanças até se configurarem no que são hoje. Com o advento da urbanização, dos veículos e de espaços concorrentes, as praças perderam sua força enquanto um local de convivência, cedendo lugar a uma utilização mais individual. Ainda assim, as praças mantiveram a característica pública: pertence a todos. Cinco especialistas foram entrevistadas e revelaram um pouco do que sabem a respeito dessas questões:
- A professora do departamento de projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Maria Ângela Faggin
- A professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFMG, Marieta Cardoso
- A arquiteta responsável pelo projeto de revitalização da Praça da Liberdade, Jô Vasconcelos
- A bióloga e gerente de áreas verdes e arborização urbana, Edanise Guimarães
- A autora da tese de doutorado “A praça brasileira: trajetória de um espaço urbano – origem e modernidade”, Júnia Caldeira


1) Como que a gente pode definir praças?

Maria Ângela Faggin:
Tem muitas maneiras de você definir. Você tem a maneira clássica, que a praça é um encontro de ruas, um entroncamento, um alargamento. Você tem uma porção de modos formais de definir, mas eu acho que a praça é exatamente aquele espaço da cidade que guarda, por assim dizer, uma certa característica extraterritorial, ou seja: é aquele lugar público, onde as pessoas deveriam poder manifestar-se livremente, fazer encontros cívicos, promover festas populares, enfim.

Marieta Cardoso:
Hoje, na definição atual, ela é considerada como um espaço livre de edificações. Então praças, em princípio, fazem parte da morfologia ou do desenho da cidade. Só que elas não têm edificações, então elas são consideradas espaços livres de edificações.De maneira geral, as praças são de propriedade pública, mas tem praças de propriedade privada também. De maneira geral, elas têm um valor urbano e também um valor social, porque ela congrega tudo isso (social, político, estético).

Jô Vasconcelos:
Na minha percepção, é uma área de respiro na cidade, é onde você tem condições de fruir de uma paisagem diferenciada, de um verde, de um som diferente, onde você possa curtir seu ócio sem ser interrompido. É um lugar também onde as pessoas se encontram, onde existe um convívio da sociedade, onde as pessoas se encontram para manifestar por algum motivo político, algum motivo de festa, enfim, há vários acontecimentos dentro de uma praça. Não precisa ser necessariamente arborizada, pode ser apenas um largo ou uma área seca que esteja colocada estrategicamente dentro de uma área urbana.

Edanise Guimarães:
Praças são áreas com características naturais do comprimento urbano que sofreram ações e intervenções de projetos urbanísticos e humanos. Essa é a definição usada para praças. Elas são espaços urbanizados, com equipamento (bancos, postes) e comportam atividades de lazer.

2) Antigamente, as praças brasileiras eram espaços utilizados majoritariamente de forma coletiva, abrigando manifestações religiosas, políticas e sociais. Atualmente, verifica-se mudanças na apropriação destes espaços. Quais são esses novos usos e a que fatores se devem essa mudança?


Maria Ângela Faggin:
É muito difícil a gente dizer quais usos as praças têm hoje. Acho que com o passar do tempo elas foram perdendo um pouco dessas características devido a uma porção de motivos. Você nunca vai conseguir discutir o uso da praça sem discutir condições políticas dos países e a própria evolução da sociedade. Eu acho que no Brasil a praça esvaziou-se um pouco desse conteúdo cívico a partir de 64 porque já havia uma dificuldade muito grande de se utilizar as praças pra essas manifestações. Além disso, também, acho que as cidades em alguma medida se acostumam: ou essas atividades, que deviam acontecer nas praças, deixam de ocorrer ou elas se retiram pra situações mais particulares, privadas e nunca voltam à praça. Então eu acho que hoje em dia, nas cidades brasileiras, você tem de tudo. Atualmente, se forem praças de bairro, têm esse uso do cotidiano mesmo, especialmente um uso infantil, e se forem praças centrais elas têm muito o uso de circulação, as pessoas passam pelas praças.

Marieta Cardoso:
Atividades de lazer, praticamente recreio e lazer. Ela pode ser uma praça ornamental, pode ser uma praça recreativa, só de esportes, pode ser educativa. Ela tem uma função na forma da cidade e faz parte da configuração da cidade. Faz parte também da estética da cidade, da circulação. Eu acho que o veículo motor no final do século XVIII, que promoveu essas grandes transformações. Antes eram só o que? Carroças, animais, antes tinha jeito de conviver o pedestre com os veículos e tinha mais pedestre do que veículo, hoje já é o contrário praticamente em todas essas vias.

Jô Vasconcelos
Existem vários tipos de apropriação, as devidas e as indevidas. A Praça da Liberdade foi, durante muitos anos, um centro comercial. Depois ela foi transferida para a Afonso Pena. De meados dos anos 70 até 1991, a Praça virou um grande centro comercial. Na praça há um pipoqueiro, um sorveteiro, mas vender outras coisas ali não é apropriado. Outra apropriação indevida, porque infelizmente moramos num país com muitas desigualdades sociais, é o abrigo de pessoas sem casa. Outras vezes, as praças transformam-se em comércio de roubo, negociam artigos roubados. Outras vezes, praças que não têm condições de receber, por exemplo, um show muito grande, que envolva uma multidão que possa arrasar com a praça. Já as apropriações devidas são tudo que cabe ali dentro desde que respeite o ser vivo que é a planta, respeite a população, que é não ter vandalismo, respeite o imobiliário urbano, os jardins.

Júnia Caldeira
A praça sempre teve a função de ponto de encontro. As novas atividades hoje também ocorreram no passado. O teatro era feito na rua, depois ele vai se estabelecer em um edifício, as feiras hoje já não existem mais na praça em si, elas estão em locais fechados, mais seguros. Então, as novas funções ainda continuam mais pro lazer do que pras festas cívicas. As festas cívicas ocorrem, mas são pontuais. Antigamente as festas cívicas tinham um papel muito mais importante do que elas têm hoje, e as manifestações, as praças ainda continuam também sendo espaço para manifestações. O crescimento da cidade e os novos hábitos sociais são responsáveis pela mudança de função desses mesmos espaços. Com a fragmentação, no sentido de que os poderes e os espaços vão se fragmentar na cidade, as pessoas acabaram também buscando outros lugares pra fazer sua sociabilidade. Daí surgem os shoppings centers, o grande concorrente da praça pública na cidade moderna, os clubes, etc. Então o crescimento econômico e a própria violência urbana vão retirando do espaço público aquela função que antes ele tinha, no sentido de que as pessoas ficam menos na rua porque os espaços estão diluídos na cidade. No entanto, na população de baixa renda, a praça do bairro continua sendo extremamente utilizada. A cidade hoje é muito mais complexa na sua apropriação do espaço urbano do que foi antigamente, quando você tinha no mesmo espaço todas as camadas de poder ocupando o espaço público. Hoje você tem uma distinção muito grande.


4) E quanto à gestão das praças? Há alguma peculiaridade neste espaço que exija um tratamento diferenciado?

Maria Ângela Faggin:
A conservação é, evidentemente, uma atribuição do Estado, visto que a praça é um espaço público. Agora, eu acho que poderia existir uma forma de reivindicação de conservação. Nenhuma forma é melhor do que o uso intensivo, ou seja, se o espaço é utilizado, se as pessoas gostam daquele espaço, se elas entenderam o projeto, se elas pretendem utilizar aquilo de acordo com o que está sendo proposto, se elas pretendem qualificar aquele projeto pra outras formas de utilização, elas naturalmente têm uma reivindicação. A manutenção de uma praça é uma coisa cara, e evidentemente que o poder público vai investir seus recursos em outras coisas, em outros lugares da cidade que as pessoas usam. Então para reivindicar tem que usar. Eu tendo a dizer que não há uma particularidade de gestão, propriamente, como eu veria uma particularidade de manutenção de meios e utilização. Dentro de uma praça você tem que ter outro tipo de manutenção que vai depender do projeto, mas a gestão desse espaço continua sendo uma gestão pública. Eu acho que, uma vez construído o projeto é obrigação do poder público mantê-lo como tal, e isso nem sempre acontece.

Marieta Cardoso:
Como a praça é publica, a gestão é do órgão publico, no caso, a prefeitura. Para conter a depredação de praças, eu acho que tem que se fazer uma campanha. Ao invés de a prefeitura falar “fizemos isso”, “construímos isso”, deve fazer uma divulgação dessas legislações. Mas não é falar a lei; é falar qual é o objetivo dessa lei, por exemplo, o cidadão deve se comportar, deve cuidar da praça que é dele. Acho que tem que ter uma campanha de educação sobre o valor desses espaços públicos. Eu acho que não é a má educação do cidadão, é falta de informação.

Jô Vasconcelos:
A praça não é um espaço público qualquer porque utiliza um ser vivo para o seu contorno, ou seu ornamento, seu conforto, vegetações de pequeno, médio e grande porte. E isso não é fácil de lidar. É necessária uma manutenção; algumas plantas são temporárias; elas têm que ser molhadas. Isso é caro; é complicado e gasta dinheiro. Às vezes a prefeitura faz parcerias com empresas. Muitas vezes ela não faz a manutenção. O poder público que tem que dar conta de sua manutenção. Mas nós, como cidadãos, temos que ajudar nisso.

Edanise Guimarães:
Devemos pensar em praças que possibilitem espaços de lazer, de contemplação. Outro cuidado é observarmos bem o que a população quer. Para isso, o Orçamento Participativo vem ajudando bastante. Muitas praças são solicitadas por moradores, como o Parque da Estrela Dalva e a revitalização da Praça Raul Soares (em Belo Horizonte), ambas votadas no Orçamento Participativo. O espaço da praça é sempre de domínio público, aprovada em parcelamento urbano, isto é, quando há um terreno indiviso, uma parte desse terreno deve ser “transformada” em praça. A comunidade tem que se apropriar do espaço. Ela deve saber que é de todos e também se preocupar em preservá-lo.

5) Há espaço na cidade para novas praças?

Júnia Caldeira:
Olha, eu acredito que sim. Ainda acredito que, ao restaurar o espaço público e fornecer condições de ele ser utilizado, ele tem que estar sendo alimentado de alguma forma. Quando se fala em restaurar um espaço urbano não é você maquiar aquele espaço com uma nova pintura, um piso bonitinho, é você dar condições pra que ele tenha atividades e que ele possa novamente atrair as pessoas pra irem a esses lugares. É o caso, por exemplo, da Praça da Liberdade, que ao se retirar a feira, conseguiu, de uma certa forma, se tornar um espaço urbano de lazer novamente. Ali retornou realmente um ponto de encontro."

Projeto Manuelzão - Avenida Alfredo Balena, 190, 8º andar. BH-MG. Telefone: (31) 3409-9818 email:manuelzao@ufmg.br
Por: Juliana Afonso e Sâmia Bechelane Publicado em: 18/02/2009

2 comentários:

  1. As vezes algumas iniciativas infelizes servem para nos despertar do marasmo que ronda a nossa civilização contemporanea. O despertar é algo de extrema importancia, pois nos faz reconhecermos como cidadaos, citadinos, como grupo que temos direitos. . .Se Paris pode ter a praia do rio Sena, porque não a Praia da Estação dos mineiros??! Vamos ocupar a Praça, que a "praça é do povo". . . Junia

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  2. Estou acompanhando e acho que é o assunto mais importante dos últimos tempos na cidade. Seria ótimo se a juventude, que tem esse pique pra manifestações, assumisse a defesa dos espaços públicos. Podia se tornar um grande movimento, acima de classes e regiões da cidade, já que a praça pública é o único lugar em que pessoas de diferentes lugares e classes se encontram.

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