sábado, 14 de janeiro de 2012

Ausência


...o que eu faço com isso? Ele me pergunta, receoso de jogar fora lembranças de um passado recente que ele quer apagar e sabe que teimo em conservar tudo que tenha um pedaço de laço qualquer entre eu e o mundo...nada, respondo, apenas passe pras minhas mãos que preciso reler essas linhas antes de me decidir...

...desse jeito vamos ter que trazer um marceneiro pra ele inventar uma estante minúscula que caiba em um barco antes de sairmos navegando por aí...você me propôs essa vida mas não se desfaz de nada e quer levar o mundo com você...ou o mundo ou você, resolva, os dois não cabem, aliás, os três - eu, você e o mundo - não cabem...

...ai! Penso como pude acreditar que conseguiria virar as costas pra minha história porque existe um amor me acenando cenas de aventuras que nunca me permiti viver antes. Agora me vejo presa na armadilha que criei sem saber como responder a cada pergunta que ele me faz diante dos meus objetos, cartas, fotos, meus CDs, livros, minha casa... ele quer que eu jogue tudo fora e leve apenas meu nome pro barco. Ele diz que seremos descobridores dos mares e que nossos objetos serão as surpresas que iremos recolher durante a rota que seguiremos juntos por toda a vida, amém...ele acha que me conhece mas não entende nada de mim...não posso dizer pra toda a vida porque sou inquieta, inconstante, insegura, receosa, nunca sei se escolhi certo e logo mudo minhas escolhas, nunca sei o que quero, nem sei se acredito que ele me ama como diz amar, você vai cometer uma loucura, a voz da mãe martelando todo dia na minha cabeça desde que contei pra família que iria embora com ele sem saber quando iria voltar, a voz da mãe traz medo de fazer o contrário do que ela diz, sempre foi assim, desde criança, vinha a mãe ralhar, eu me encolhia, pensava se desistia, custei a ter coragem de desafiar, mas o medo sempre me acompanhou...

...dias remexendo as bagagens de anos de uma vida e ele pressionando pra eu acabar rápido com isso que janeiro logo termina e a gente nem vai ter saído do lugar...ele não percebe que quero ganhar tempo porque agora não sei mais se quero ir embora, se quero esse tal amor, se quero ser dele pelos dias futuros até termos um passado, se quero arriscar mesmo sabendo que posso ser feliz assim, se quero virar notícia entre os amigos, vocês viram o que a Elisa foi capaz de fazer, não acredito, foi sim, nem despediu de ninguém, nem olhou pra trás, nem terminou o curso, nem fez nada dos planos que tinha, nem isso, nem aquilo...

...olho pra ele, tão terno, tão amoroso, tão tudo o que esperei a vida toda que meu medo triplica, fraquejo, penso que vou fazer uma canalhice, mas não vou ter coragem de me entregar assim, penso que vou sair pela porta, vou até a rodoviária, vou embarcar no primeiro ônibus que eu achar passagem num guichê qualquer, penso tudo isso em um segundo e quando dou por mim já me decidi e é por isso que estou aqui te contando essa história, porque tudo isso aconteceu há mais de 20 anos e vim parar nesse lugar e ninguém nunca mais ouviu falar de mim...se nunca me arrependi? Fiz um trato comigo quando saí pela porta, de não pensar em nada mais do que ficou pra trás, aliás, nunca pensei mesmo, só hoje, porque você veio com essa história de que me procura há anos, me encheu de pergunta, falou que seu pai nunca me esqueceu e que se essa que você procura for eu de verdade, você quer me levar pra que ele me veja, olha, menina, tá perdendo seu tempo, não quero pensar sobre isso, não, não quero ver esse amor que não aconteceu, não quero sair com você, não quero ter essa chance agora, o tempo já desenhou outro rosto em mim, seu pai nem iria me reconhecer, volta lá, diz a ele que não me encontrou, melhor a dúvida, melhor ele não me pedir pra dizer por que fiz tudo isso assim...até hoje eu também procuro essa resposta...

(da Série: "O amor de cada um", n.13)