Entrevista de Pacha Urbano, criador das tirinhas "As fantásticas traumáticas aventuras do Filho do Freud", concedida à Juliana Marques Caldeira Borges, psicanalista do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG). Pacha está em Belo Horizonte para o lançamento do livro "O Filho do Freud" no Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), com sessão de autógrafos hoje, 15/11, às 18hs, na Serraria Souza Pinto.
Juliana: Pacha, como surgiu
a idéia de escrever as tirinhas “As fantásticas traumáticas aventuras
do Filho do Freud”?
Pacha: Foi durante uma aula de Psicanálise e
Educação, no ano passado, na faculdade onde curso Pedagogia. A professora
passou uma cinebiografia sobre Freud e ao final do filme pensei: “Deve ter sido
uma droga ser filho do Freud”, porque um homem tão devoto ao próprio trabalho
não teria muito tempo para compartilhar com a família, além, claro, de como lhe
pareceriam óbvias todas as gracinhas de uma criança. E veio aquele estalo!
Sempre levo comigo algum caderno de desenho, e então rabisquei a que viria a
ser a primeira tirinha da série. Nela o primogênito do Freud aparecia no
consultório com uma toalha nas costas e uma cueca na cabeça, se mostrando para
o pai como sendo o Superego, estas coisas que as crianças fazem e nós rimos,
mas para o pobre Jean-Martin o resultado foi traumático.
Juliana: Você imaginava
qual a repercussão que elas teriam?
Pacha: Não fazia ideia. Até hoje me surpreendo com
a quantidade de gente que diz conhecer as tirinhas, ou mesmo o tráfego de
curtidores na página do Facebook. A princípio publiquei uma foto do meu caderno
com a tirinha rabiscada no meu perfil, para meus amigos, e a coisa foi
compartilhada por uma porção de pessoas. Acabou que alguns meses depois um site
de humor a republicou, sem qualquer crédito para mim, e isso me deixou
preocupado. Como virava e mexia me pediam outras tirinhas, decidi fazer mais
algumas dentro daquele mesmo clima da primeira e passei a publicá-las num
tumblr, e então no Facebook, e foi aí que a coisa se proliferou de verdade. De
31 de maio do ano passado, data da primeira tirinha publicada no Facebook, até
hoje, toda terça-feira, e às vezes em outros dias da semana também, publico uma
tirinha nova, que é compartilhada por centenas (algumas delas por milhares) de
pessoas. Logo nas primeiras tirinhas eu fui convidado para participar de um
simpósio de Psicanálise na UNESP de Bauru, além de editoras querendo
publicá-las em livro. Era surreal para mim a velocidade com que as coisas foram
se dando. A progressão é ainda maior porque elas são traduzidas por voluntários
para outros três idiomas: inglês, francês e espanhol. Então é normal receber
comentários de gente de outros países, pedindo atualização das tirinhas. Soube
também que alguns professores e alunos usam as tirinhas em seus trabalhos. E
pensar que tudo começou como uma gozação...
Juliana: As tirinhas são
ótimas. Qual o seu conhecimento dos conceitos desenvolvidos por Freud tais como
Complexo de Édipo, Histeria, Inconsciente, dentre outros, para conseguir
utilizá-los com propriedade e humor em suas criações?
Pacha: Estudo Psicanálise como autodidata há alguns
anos, porque é um assunto que me interessa muito. Entrei em contato com as
obras de Freud quando fui fazer uma pesquisa sobre indumentária do século XIX
para um projeto de quadrinhos passado nesta época (e que acabou nem sendo
publicado), no início dos anos 2000. Como não tinha acesso à internet naquela
época, recorri a revistas e livros que tivessem fotos da Europa neste período e
me esbarrei com Teratologia e Psiquiatria na Era Vitoriana, a antropologia
criminal de Cesare Lombroso, as investigações sobre hipnotismo de Jean-Martin
Charcot e então Freud e o estudo sobre sonhos. Desde então estudei as obras
completas, e alguns trabalhos dos seus discípulos. Acho que este projeto das
tirinhas é uma tentativa minha de comprimir todos estes anos de estudos em
quatro quadrinhos por vez. Até mesmo para poder compreendê-los, jogar com eles.
Com o agravante, obviamente, de tentar fazer as tirinhas parecerem engraçadas
também para o leigo, não só para quem já está familiarizado com a Psicanálise.
É o meu desafio a cada vez que abro o computador e penso na próxima tirinha:
quantos níveis de compreensão eu consigo embutir nestes quatro quadrinhos? Como
analisando e como entusiasta da Psicanálise é bastante proveitoso, porque me
deparo com temas complexos e os desconstruo para fazer caber numa piada. Como
artista é divertidíssimo explorar o humor gráfico - com o qual não tinha muita
intimidade, a não ser como apreciador - porque sempre achei dificílimo fazer
humor, principalmente tirinhas de humor. Está sendo uma experiência sensacional
e um grande aprendizado este exercício.
Juliana: Segundo Freud, "o humor é, pois, a rebelião do ego contra as circunstâncias adversas, transformando o que poderia ser objeto de dor em objeto de prazer"...Qual a sua opinião sobre a capacidade do ser humano de brincar e rir de si mesmo em tempos tão agressivos e pesados, como os da sociedade atual, onde a desigualdade, a violência e o narcisismo têm se mostrado tão em evidência? É possível rirmos de nossa dor, na contemporaneidade?
Pacha: O homem sempre riu
de si mesmo, não sei se por um tipo de mecanismo de defesa ou por morbidez, mas
procurou sempre encontrar algo de patético no trágico através da ironia. Como
ironizar é que é a ciência. Minha grande preocupação nas tirinhas é não ofender
alguém ou alguma minoria, que já apanha o suficiente de todos os lados, só para
garantir uma piada. É muito fácil fazer troça de quem já está derrubado, nunca
gostei disso. Prefiro fazer piadas que tenham a ver com condutas e escolhas
equivocadas, ou ainda situações do cotidiano que temos como naturalizadas e
que, se vistas de outros ângulos, são extremamente absurdas. Trato de revezar
os vetores da piada, justamente para não massacrar ninguém, embora alguns
arquétipos eu mantenha; como o Jean-Martin, que é mais ingênuo, a Anna, que é
mais maliciosa, o velho Freud, que é mais provocador, a Martha, que é mais
compreensiva, e assim por diante, onde todos são alvo das piadas, mas também
alfinetam. Por exemplo, ora o Jean-Martin é aterrorizado pela figura paterna,
ora é o velho Freud que sofre com a agressão edípica do filho, ora a Martha acolhe
os filhos, ora é oprimida pelas neuroses deles. Tudo carregado de humor negro,
mas tentando sempre não cruzar a fronteira sutil da ofensa e da baixaria tão
fácil de cruzar se não tivermos consideração pelo outro. O mesmo para os
pacientes que aparecem no consultório do doutor com suas mazelas e traumas, que
se por um lado não os poupo, ironizando-os, por outro ataco quem os faz vítima
também. Não é um trabalho fácil, recebo críticas, mas é fundamental aprender a
quebrar a sisudez que as pessoas se impõem, principalmente no meio
psicanalítico.
Juliana: Em seu artigo "Do trágico ao drama, salve-se pelo humor" (1), a psicanalista Maria Mazzarello Cotta Ribeiro escreve que "Freud considerava o humor um dom raro e precioso." Ainda, segundo a autora, "Freud foi descrito, pelos seus biógrafos, como sendo um homem espirituoso. Algumas passagens de sua vida confirmam este dom, por exemplo, quando as autoridades nazistas exigiram que ele assinasse um documento declarando não ter sofrido maus-tratos. Ele assinou, mas acrescentou de próprio punho: "Posso recomendar altamente a Gestapo a todos". Para sua sorte, seu fino humor passou despercebido pelos oficiais". Então, para terminarmos brincando, se Freud comparecesse hoje ao FIQ para a sessão de autógrafos de "O Filho do Freud", o que você diria a ele?
Pacha: Sempre achei o Freud um gozador. Aquela
figura séria das fotografias não compete com a imagem que tenho dele ao ler
seus textos, cheios de ironias com seus opositores, ou as centenas de citações às
obras de outros estudiosos, com alguma irreverência. As conferências dele
sempre são entrecortadas por algum comentário deste tipo. Entretanto, escreveu
um dos livros sobre chistes mais chatos do Ocidente! Hahahaha! É isso: o vejo
como um sujeito solene na apresentação de suas ideias, mas que conseguia
encontrar graça no absurdo. E, se de alguma
forma ele pudesse aparecer na sessão de autógrafos do Filho do Freud no FIQ,
passada a estupefação inicial de ter diante de você alguém que admira tanto, eu
diria: “Obrigado por me ajudar a não me levar tão a sério, doutor.”
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(1) link do artigo:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0100-34372008000100013&script=sci_arttext
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0100-34372008000100013&script=sci_arttext
Pacha Urbano:
escritor, criador das tirinhas “As fantásticas
traumáticas aventuras do Filho do Freud”.
Juliana
M. Caldeira Borges: psicanalista,
professora da disciplina “Formações do Inconsciente” (Formação em Psicanálise)
do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, mestre em Ciências da Saúde, Saúde da
Criança e do Adolescente/FMUFMG.
Parabéns, Juliana, pela entrevista. Achei muito interessante.Temos que levar o humor mais em conta, porque ele é sempre uma grande saída.
ResponderExcluirparabéns pela entrevista, Juliana. Gostei muito. Vamos nos concentrar mais no humor, que é sempre uma grande saída.
ResponderExcluirGostei da entrevista, colega. Parabéns.
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