E porque o claro do dia se deixava tingir de cores que
findam a tarde, ela resolveu buscar no armário o vestido preferido que lhe assegurava a
identidade, a sua, perdida nos trabalhos domésticos que vinha exercendo desde
que o marido se fora...
Nem se lembrava mais de quando saiu pela última vez...foi
com ele, o marido...dançaram os minutos de alegria que se perderam no luto e
que foram os que restaram das lembranças esquecidas...porque a morte foi de tal
maneira um atropelo nas lembranças, que ela precisou esquecer de tudo...mas nem
tudo se pode esquecer porque se quer...cenas teimam em invadir espaços no
pensamento mesmo quando se deseja o oposto...
Era o marido que se tornou dela há 30 anos, marido de dar
inveja, diziam todas as que se diziam amigas, mas foi uma delas que ao lado
dele recolheu seu último suspiro e lhe roubou a cena da despedida, deixando a ela de herança a amargura da traição...
Custou a entender o relato dos vizinhos, enquanto vários
jogavam palavras emboladas em seu ouvido, cada um querendo ser o mensageiro da notícia
descabida...porque se tem algo que corre o mundo é notícia ruim e outro algo
que é sempre certo é portador de desgraça...
Sim...pra ela a morte dele se tornou sua desgraça...conheceu
uma raiva nunca antes familiar, se viu como louca, como alguém que traz consigo
a vingança como certa, se distanciou tanto de quem fora que nem os filhos
conseguiram suportar...
E quando teve que mandar embora quem a ajudava em casa por falta
de dinheiro, passou a trabalhar logo que o dia dava sinais de vida, e sem
vontade nenhuma de enfeite porque de homem ela não ia saber nunca mais...
Mas como nunca é, em muitos casos, a negação do desejo, aquela tarde
trouxe-lhe o vestido de volta, sua vontade de se ver nele de volta, e de volta
ao mundo dos preparos do corpo ela quis retornar...
Fez tudo como antes...com esmero, delicadeza, ternura e
movimento...olhou-se no espelho em silêncio...pensou em como se deixou
abandonar por um marido que jamais teria de volta...mandou a raiva embora e prometeu
que haveria de estar pronta quando dela o amor se reaproximasse.
Saiu naquela noite. E na seguinte. E mais em outra. E em várias...até
que depois de uma delas perdeu, com uma alegria planejada, o caminho de casa.
O vestido, esse ela nunca mais tirou. Anda pelas ruas. Vaga pelas
noites. Entrega-se. Onde, quando e como, ninguém sabe. Ninguém viu.
(da Série: “O amor de cada um”, n. 19)