Essa história começou aos 72, quando ninguém mais, em casa, se importava com ela. Ninguém mesmo, nem o cachorro, que antes vinha lhe roçar a perna, querendo um resto de comida.
Mas da noite pro dia se percebeu invisível... invisível mesmo, desses desenhos que vão se apagando com o tempo até ninguém mais enxergar. Descobriu-se, então, um desenho apagado. Foi daí que pensou em ir embora, já que destino de desenho apagado é cesta de lixo, quando não o amassam antes.
Não entendia como isso tinha acontecido. Antes se sentia tão importante em casa... Acordava, fazia café, alimentava os netos, mandava pra escola, depois cuidava deles até a filha voltar, lavava roupa, varria casa e tudo o que uma dona de casa tem que fazer ela fazia, mesmo com o adiantado da idade. E no fim da noite ganhava benção, beijo, “brigado, Vó”, “você é demais”, “não sei o que faria sem você por perto, mãe”, e muitas palavras dedicavam a ela, e assim foi por muito tempo.
Mas aí percebeu que as palavras foram minguando. Pensando bem, não foram as palavras que minguaram primeiro...foi ela mesmo, pensou, com certa dor... Começou uma coisa primeiro, depois outra, tudo devagar e em silêncio... Numa manhã de frio não conseguiu se levantar, como de costume...aí a filha reclamou porque desse jeito ela ia sair pro trabalho atrasada e os meninos não iam comer antes da escola. Ouviu tanta reclamação em tom diferente que nem contou que sentia uma dor aguda no peito que não a deixava se levantar...achou que alguém iria lá, no quarto, ver o que acontecera...até que o caçula foi, pra olhar se ela estava de olho aberto, e gritou pra mãe “A Vó acordou sim, mas tá com preguiça, viu, mãe, porque só olhou pra mim e fechou o olho de novo.” Ouviu a filha dizer, com raiva: “Mais essa, agora...então “vão bora”, gente, porque não tenho tempo pra preguiça, não.”
Depois desse dia, nunca mais as coisas foram como antes...pra levar no médico, a filha reclamava...pra ajudá-la com qualquer coisa, mandava os meninos...e foi assim que ela começou a minguar. E foi assim que as palavras de casa, pra ela, minguaram também...
Depois de um tempão à míngua, lembrou-se de quando era criança, da D. Antônia, que vivia nas ruas da sua cidade, comendo da caridade dos outros, mas pelo menos teve linha de contorno até morrer...não ficou invisível não, isso ela se lembrava...as crianças mesmo iam pra praça só pra ouvir as histórias engraçadas que a D. Antônia contava...ela era uma que ia. Ia tanto que, às vezes, até voltava pra casa com puxão de orelha da mãe, quando se esquecia das horas da noite. A idéia de virar D.Antônia começou com essa lembrança. Veio desse jeito, depois que passou um dia inteiro esperando alguém perguntar se ela queria comer e viu que tinham, mais uma vez, se esquecido dela...lá pelas tantas, alguém falou: “Vixe, a Vó tá no quarto até agora!”...aí levaram uns tantos pra ela, coisa pouca, que até coube em prato de criança, justificado pelo “Ce não gosta dessa comida mesmo, ne, Vó?”...
Começou a pensar que a D.Antônia foi mesmo esperta, pois contava que fugiu da casa do filho quando a nora passou a implicar com ela, “pra não virar objeto feio de decoração que o dono não devolve pra loja porque não tem coragem”. A primeira vez que ouviu D.Antônia falar isso achou que era brincadeira dela...depois, de tanto ouvir suas histórias e observar os velhinhos da cidade, começou a entender. E agora parecia entender mais ainda essa história de velhice...e depois de uns meses nessa agonia de se ver sumindo dos olhos da casa, tomou a decisão de imitar D.Antônia...
Planejou tudo direitinho. Primeiro ia ter que sair da cama, pra fazer as pernas se acostumarem com o andar de novo...mesmo que devagar...não ia ficar andando na rua mesmo...já resolvera tudo...ia ficar sentada na esquina da rua da padaria do bairro do lado e ali iam lhe dar comida e todo o resto que morador de rua precisa pra não morrer de frio. A filha nunca ia mesmo ao bairro do lado, nem ia se lembrar de procurá-la lá, tanta raiva tinha do lugar onde o marido conheceu a menina de 20 anos que levou ele embora...
Então, toda vez que ficava sozinha, dava uns passos pela casa, se aprumava um pouco, ia treinando, até sentir que o dia de fuga chegava mais perto.
E chegou...foi no dia que as crianças tinham uma feira na escola e a filha nunca faltava quando era coisa de escola dos meninos. Ouviu as combinações que eles fizeram lá na sala...e começou a combinar com seu pensamento a sua saída, pra sempre, de lá. Pensou que ia ser pra sempre porque nessa vida uma coisa era certa: gente esquecida não volta, não volta mesmo, se ninguém vê, imagina lá se vai procurar?
Então foi assim que essa história acabou... ela preparou tudo, esperou eles saírem, tomou coragem e foi embora...
Na cama, deixou uma folha em branco, amassada...um retrato da sua imagem invisível, sem dedicatória e sem letra de despedida...