sábado, 17 de maio de 2014

O vestido


E porque o claro do dia se deixava tingir de cores que findam a tarde, ela resolveu buscar no armário o vestido preferido que lhe assegurava a identidade, a sua, perdida nos trabalhos domésticos que vinha exercendo desde que o marido se fora...

Nem se lembrava mais de quando saiu pela última vez...foi com ele, o marido...dançaram os minutos de alegria que se perderam no luto e que foram os que restaram das lembranças esquecidas...porque a morte foi de tal maneira um atropelo nas lembranças, que ela precisou esquecer de tudo...mas nem tudo se pode esquecer porque se quer...cenas teimam em invadir espaços no pensamento mesmo quando se deseja o oposto...

Era o marido que se tornou dela há 30 anos, marido de dar inveja, diziam todas as que se diziam amigas, mas foi uma delas que ao lado dele recolheu seu último suspiro e lhe roubou a cena da despedida, deixando a ela de herança a amargura da traição...

Custou a entender o relato dos vizinhos, enquanto vários jogavam palavras emboladas em seu ouvido, cada um querendo ser o mensageiro da notícia descabida...porque se tem algo que corre o mundo é notícia ruim e outro algo que é sempre certo é portador de desgraça...

Sim...pra ela a morte dele se tornou sua desgraça...conheceu uma raiva nunca antes familiar, se viu como louca, como alguém que traz consigo a vingança como certa, se distanciou tanto de quem fora que nem os filhos conseguiram suportar...

E quando teve que mandar embora quem a ajudava em casa por falta de dinheiro, passou a trabalhar logo que o dia dava sinais de vida, e sem vontade nenhuma de enfeite porque de homem ela não ia saber nunca mais...

Mas como nunca é, em muitos casos, a negação do desejo, aquela tarde trouxe-lhe o vestido de volta, sua vontade de se ver nele de volta, e de volta ao mundo dos preparos do corpo ela quis retornar...

Fez tudo como antes...com esmero, delicadeza, ternura e movimento...olhou-se no espelho em silêncio...pensou em como se deixou abandonar por um marido que jamais teria de volta...mandou a raiva embora e prometeu que haveria de estar pronta quando dela o amor se reaproximasse.

Saiu naquela noite. E na seguinte. E mais em outra. E em várias...até que depois de uma delas perdeu, com uma alegria planejada, o caminho de casa.

O vestido, esse ela nunca mais tirou. Anda pelas ruas. Vaga pelas noites. Entrega-se. Onde, quando e como, ninguém sabe. Ninguém viu.


(da Série: “O amor de cada um”, n. 19)